terça-feira, 1 de junho de 2010

E, por fim, a Páscoa chegou para o João, autor deste blogue! Aleluia!


"Eu sei que o meu Redentor está vivo
e no último dia Se levantará sobre a terra.
Revestido da minha pele, estarei de pé,
na minha carne verei a Deus.
Eu próprio O verei,
meus olhos O hão-de contemplar"
Livro de Job (19, 1.25-27)



No último texto da sua autoria (ver abaixo na íntegra) deixa-nos em comunhão com o Espírito Santo um testamento:

Nós
e o Espírito Santo
(...)
Como testamento
um mandamento:
amai
respeitai
procurai o bem
onde a eternidade começa
e o Reino…
dai pão aos famintos…
a recompensa
é essa!

J.M. Gonçalves


Dos mais de trinta anos de convívio com Frei João, os últimos meses foram de convívio íntimo mais intenso. Este blogue de que fui cúmplice, foi cruzado de imensos telefonemas em que as ideias, as mais variadas, fluíam como jorro de fonte límpida, numa mente que, por vezes, já precisava de parar para apanhar fios perdidos na meada do tempo.

A última chamada não foi atendida e quando, horas mortas, dei pelo chamamento, não quis perturbar-lhe o Sono que não sabia estar a aproximar-se na sua forma Eterna.

Soube-o no dia seguinte, dia vinte e quatro de Maio, eram umas dez horas da manhã...

Um Dia retomaremos a conversa, João, no ponto em que a deixaste! Entretanto vou congeminando sobre o que é que me querias dizer nessa véspera da tua Páscoa para o Reino.

... era talvez para te despedires, pois os amigos não partem sem avisar!

Peço-te desculpa pela minha falta de atenção. Entretanto...

Vai-te lembrando de mim, aí no Reino...

e Até Breve

Mata Fernandes

Nota: Ver notícia biobibliográfica sobre Frei João

segunda-feira, 17 de maio de 2010

JOSÉ MOURINHO

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A espuma dos dias

( ao José Mourinho)

Apontei o dedo ao destino
e disse:
é por aqui
o real e o sonho deram as mãos
o querer
com a meta tão longe de mim
tornaram mais firme
o caminhar atento e decidido
na certeza de chegar
a espera deu-me alma
e ânimo, por dentro,
a olhar sempre em frente
olhos nos olhos
na alegria de chegar,
tinha o mundo na mão
ta vitória dos dias que me seguiam
e se desdobraram…
fui onde cheguei, e ainda é cedo
O desafio continua no ponto mais belo de existir
escolher os momentos certos
viver a vida com o coração, mas sempre
de olhos bem abertos!
Ontem
foi o futuro…
in "À flor do verso" de J.M. Gonçalves

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O SENHOR PAPA

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Cimabue
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Nós
e o Espírito Santo
não vos impomos nada,
amai
dizei
e fazei
proclamai quem é a Verdade
a Bondade
ainda que vos custe a vida
e a morte esteja, a dois passos
como um fim que não é,
assim está escrito.
Como testamento
um mandamento:
amai
respeitai
procurai o bem
onde a eternidade começa
e o Reino…
dai pão aos famintos…
a recompensa
é essa!

J.M. Gonçalves

quinta-feira, 13 de maio de 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

ROSAS

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Foto J. M. Gonçalves

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Foto J.M. Gonçalves



Foto J. M. Gonçalves

domingo, 9 de maio de 2010

sábado, 8 de maio de 2010

O PASTOR

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(ao meu Bispo)

O pastor
arauto e voz
de quantos o seguem e ouvem
e reconhecem aquele chamar
pelo nome
que só eles sabem
e guardam
no coração
e no espelho do olhar atento
de quem ama.
No sono sobressaltado,
sossega,
depois de as ter contado
e não lhe faltar nenhuma.
É o regresso.
No ombro cansado da caminhada
no remorso de a ter perdido
uma ovelha tresmalhada…
o cordeiro que traz ao colo
nascera há pouco…
já tem nome que vai aprender
com o bater daquele coração aliviado
a transbordar de ternura e alegria
naquele fim de tarde
consolado e feliz.

Abrem-se as portas.
Uma voz conhecida chama:
são as suas!

J.M.Gonçalves

ALERTA

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Foto J. M. Gonçalves

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…e a vida em flor
desabrochou
em milhares de olhos
fixos na luz que os move
e os comove
coração a transbordar
da franqueza de se dar
num canto alado de arvoredos e céus
ânsias que se consomem
na procura e resgate
do futuro
nas pistas do tesouros por descobrir
no querer
ir sempre mais longe
de mãos dadas a cantar
a sorrir e a amar no segredo dos dias
sem ocaso.

in "À flor do verso"

sexta-feira, 7 de maio de 2010

COM SOL

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Ao vento

Nasceram-me sonhos
sem palavras
a borbulhar ao vento...
o azul do mar mais lento
nas horas e no alento da luz mágica
da cambraia dos desejos
nas ondas e marés
da vida.
J.M. Gonçalves

quinta-feira, 6 de maio de 2010

ANDA VER

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Cheia de aleluias
nos olhos
naquele azul de noite
quente
a nova
de que o presente
a dádiva que nascera
do ventre fecundo
da alegria
sorria
cantava no seu chorar
de menino
a promessa cumprida
do que agora
é…

J.M.Gonçalves

O PÃO

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Julien Dupré

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PÃO BENTO

Pão bento
da raiz à espiga
na força de crescer
e ficar loiro
como o desejo
de acompanhar o vinho
novo
do reino já anunciado,
para além da seara,
no cruzar
de todos os caminhos.
Torna-se alimento,
força
sustento e certeza
futura
de qualquer e nova
semeadura.
J. M. Gonçalves

Poema da PRIMAVERA

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VER-TE-EI
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Foto J. M. Gonçalves


Ver-te-ei, amor
numa esquina da vida
perdido
e de mão estendida
à procura do teu olhar
ou de um gesto…
em vez da esmola
esperada
que já não quero
e que me foi negada.
J. M. Gonçalves

domingo, 25 de abril de 2010

ANTÓNIO SANTOS - Pintor

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MULHER


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O sangue é algemas
cor e dor
exuberância feminina
obscena e explorada
na confusão de cores e volumes
cores que se abraçam e entrelaçam
ou não
provocadora...
a mulher também
em todas as cores
em todas as dores...
mágicas
do arco-íris.
J. M. Gonçalves

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ANTÓNIO SANTOS SILVA

Nasceu na aldeia de Castro (Valpaços), foi viver para Jou, aos 10 anos de idade.
Aos 24 anos emigrou para Paris, trabalhando em diversos ofícios.
Actualmente tem uma empresa de pintura e restauro de imóveis onde trabalha.

O permanente contacto com pintores e a pintura leva-o a enveredar por este processo de expressão artística e cultural.
Frequentou vários cursos de escultura pintura, e modelagem, no Carroussel do Louvre, com conceituados Mestres da Pintura.
Começou a expor os seus trabalhos em Exposições colectivas, e depois em Exposições individuais: em França, na Bélgica, na Alemanha e em Portugal.

POEMAS ILUSTRADOS

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EMAÚS
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A dois passs da esperança

O caminho era cada vez mais longo.
Tantas vezes o percorreram.
Porquê agora, aquele peso na alma
e o desgosto a consumi-los por dentro,
aquela conversa trôpega, quase murmurada,
como se estivessem a guardar um segredo,
ou a esconder a angústia
que lhes ia na alma, com o coração em pedaços.
- De que falais?
Vidas. Consumiu-se a nossa esperança,
sonhámos a liberdade, um mundo novo,
a alegria da mão que se estende, na doação fraterna,
no entusiasmo de dar alegria e viver. Tudo morreu
tudo desapareceu
no maior sofrimento,
no limiar da morte,
atravessado de cravos…
- Porquê essa conversa?
- Que pergunta! Aconteceu.
E agora? Temos os sonhos lavados em lágrimas.
A promessa fugiu-nos por entre os dedos,
Como água que não beberemos.
- Mas não devia ser assim?
- Correram vozes que quase nos fizeram acreditar…
mulheres!
É noite, fica connosco, faz-nos companhia.
Repartiremos contigo
o que tivermos.
Um gesto, um olhar, um pedaço de pão…
uma alegria fogosa, mas tranquila
empurrou-os numa corrida para Jerusalém.
Entraram com a notícia
mas não era novidade .O coração deu um salto.
Na alma assustada, num eco longínquo
o coração, ainda aos pulos de alegria e confusão,
lembrou:
- Mas, não devia ser assim?

J. M. Gonçalves

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Frederic Chopin (1810-1849)

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Assinatura
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Frédéric Chopin (Żelazowa Wola, 1 de Março de 1810[1] — Paris, 17 de Outubro de 1849) foi um pianista polaco[2] e compositor para piano da era romântica. É amplamente conhecido como um dos maiores compositores para piano e um dos pianistas mais importantes da história[3] Sua técnica refinada e sua elaboração harmónica vêm sendo comparadas historicamente com as de outros génios da música, como Mozart e Beethoven, assim como sua duradoura influência na música até os dias de hoje uma técnica refinada e sua elaboração harmónica vêm sendo comparadas historicamente com as de outros génios da música, como Mozart e Beethoven, assim como sua duradoura influência na música até os dias de hoje

CHOPIN

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MIRÓ


Iguais
os acordes e a marcha
lenta
de despedida.
O piano é mais triste
ainda!
É o apagar de uma vida
de uma viagem
e um adeus.

J. M. Gonçalves

domingo, 11 de abril de 2010

SENHORA DAS DORES

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Van Gogh

Eis o mandamento
e a dor
de amar ainda mais
esse teu filho
a quem te deixo
nas encruzilhadas do mundo
a espalhar gestos de mãe
nos rostos e nas dores
de tantos
abandonados
perseguidos
derreados pelo cansaço
da vida
das feridas abertas
no corpo e na alma
no desencanto dos dias
sem luz nem norte
e tu
aí tens a Mãe
que é tua também
a quem acolhes
nas preces de cada dia
com o coração despedaçado
porque lhe vai ser tirado
o filho que deu à luz.
Faz do teu coração
a sua casa.

J. M. Gonçalves

sábado, 27 de março de 2010

PORCA DE MURÇA

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PORCA DE MURÇA


duraremos
a eternidade circular
da sua forma ambígua e
tumular

deusa-mãe do
terror que a fé na pedra copiou
e que o musgo do tempo disfarçou

a nossa condição é o seu rito
criaturas geradas
das suas entranhas geladas
de granito


Fernão de Magalhães Gonçalves
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Porca de Murça

É o símbolo que identifica a vila de Murça.
Esta escultura em granito, encontra-se rodeada por lendas popular, não sendo exacta qual a sua verdadeira proveniência e propósito.
A lenda mais popular é que no século VIII esta povoação e o seu termo eram assolados por grande quantidade de ursos e javalis. Os senhores da Vila, secundados pelo povo, tantas montarias fizeram que extinguiram tão daninha fera, ou escorraçaram para muito longe. Mas, entre esta multidão de quadrúpedes, havia uma porca (outros dizem ursa) que se tinha tornado o terror dos povos pela sua monstruosa corpulência, pela sua ferocidade, e por ser tão matreira que nunca poderia ter sido morta pelos caçadores. Em 775, o Senhor de Murça, cavaleiro de grande força e não de menor coragem, decidiu matar a porca, e tais manhas empregou que o conseguiu; libertando a terra de tão incomodo hóspede. Em memória desta façanha se construiu tal monumento, alcunhado “a Porca de Murça”, e os habitantes da terra se comprometeram por si e seus sucessores, a darem ao Senhor, em reconhecimento de tão grande benefício, para ele e seus Herdeiros, até no fim do inundo, cada fogo três arráteis de cera anualmente, sendo pago este foro mesmo junto à porca.
No entanto, há quem defenda que os atributos masculinos bem visíveis não enganam, e que a Porca de Murça, é na verdade um berrão, do mesmo género dos que se encontram frequentemente na zona oriental de Trás-os-Montes, relacionados com um culto da fertilidade de povos pré-romanos.
Seja como for, é hoje um monumento que se ergue, orgulhoso sobre um plinto, no jardim da praça central, com os seus impressionantes 2,8 metros de medida no ventre, 1,10 m de altura e 1,85 m de comprimento.

domingo, 21 de março de 2010

DA POESIA

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PARA SEMPRE
(ao Pedro))

É hoje, é todos os dias
são todos os momentos
na vida
que passa devagar,
no nosso sim eterno a partir de cada aurora
dois corações a palpitar
de esperança
num só
nesta demora de prazer e lágrimas
neste presente repetido
de sofrimento
no oferecer e lembrar em cada lágrima perdida
de angústia e azul
na sombra envergonhada que nos segue
e seguirá
nas horas aflitas que foram as nossas…
Amanhã voltará
a alegria e a dor
de amar
para sempre.
Milagres, só o amor…

J.M. Gonçalves
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sexta-feira, 19 de março de 2010

VIRGÍLIO FERREIRA

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Nasceu em Melo, no concelho de Gouveia, em Janeiro de 1916, filho de António Augusto Ferreira e de Josefa Ferreira. A ausência dos pais, emigrados nos Estados Unidos, marcou toda a sua infância e juventude. Após uma peregrinação a Lourdes, e por sugestão dos familiares, frequenta o Seminário do Fundão durante seis anos. Daí sai para completar o Curso Liceal na cidade da Guarda. Ingressa em 1935 na Faculdade de Letras a Universidade de Coimbra, onde concluirá o Curso de Filologia Clássica em 1940. Dois anos depois, terminado o estágio no liceu D. João III, nesta mesma cidade, parte para Faro onde iniciará uma prolongada carreira como docente, que o levará a pontos tão distantes como Bragança, Évora ou Lisboa.
Este homem reuniu em si diversas facetas, a de filósofo e a de escritor, a de ensaísta, a de romancista e a de professor. Contudo, foi na escrita que mais se destacou, sendo dos intelectuais contemporâneos mais representativos. Toda a sua obra está impregnada de uma profunda preocupação ensaística.
Vergílio foi também um existencialista por natureza. A sua produção literária reflecte uma séria preocupação com a vida e a cultura. Este escritor confessou a Invocação ao meu Corpo (1969) trazer em si “ a força monstruosa de interrogar”, mais forte que a força de uma pergunta. ”Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação”.
Este pensador tecia reflexões constantes acerca do sentido da vida, sobre o mistério da existência, acerca do nascimento e da morte, enfim, acerca dos problemas da condição humana.
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APARIÇÃO
Virgílio Ferreira .

A Tragédia(1)

Foi longa a história deste género dramático. A Tragédia, tem origens nebulosas nas remotas festas anuais gregas, em honra de Dionísius.

Alcançou a sua plenitude nos Sec. VI a IV A.C., com Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Ressurgiu com o Renascimento, entrou em declínio com o Romantismo como género de literatura autónomo.
Todavia o trágico, como categoria antropológica e semântica manifesta-se através de outros géneros literários: a poesia, o teatro, o romance.


Acção Trágica

Segundo os princípios estabelecidos por Aristóteles, na Poética, há uma ordem de construção da acção trágica, desenvolvendo-se, em três momentos essenciais : Prólogo, onde se apresentam as personagens e é exposta a situação a partir da qual se vai construir a tragédia; os Episódios ou peripécias que constituem o desenvolvimento, em “ crescendo “, dessa situação de partida. Através delas, a acção vai-se desenrolando e o sofrimento ( Pathos ) dos intervenientes é cada vez maior, até se chegar ao ponto culminante dessa acção e desse sofrimento - o Clímax - que pode coincidir com a “ morte “ ou as mortes das principais persnagens, a que se seguirá a última parte da tragédia, o Epílogo - em que tomaremos conhecimento das consequências das peripécias e do explodir do Clímax/ Catástrofe. Presidindo a toda a tragédia, está a presença do Destino (Fatum) a quem nem aos deuses é permitido desobedecer que passará a controlar, ainda que inconscientemente, as personagens e as leva a desafiar as leis dos homens ou dos deuses. Tal desafio ( Hybris ) não ficará impune, e sobre quem desafia, recairá o castigo ( Nemésis ) dos deuses ou da sociedade. Esta situação de luta interior irá criar nos intervenientes( por vezes a níveis diferentes ) angústia e sofrimento que se irá acumulando e aprofundando, até ao Clímax e levará à destruição (Catastrophe) física ou moral, ou aquela como consequência desta, das personagens que ousaram desfiaro destino.
Os elementos trágicos vão sendo desvendados pelos presságios que vão indiciando, com o decorrer dos acontecimentos e preocupações do(s) protagonista(s), algo que paira ameaçador, criando uma atmosfera de fatalidade irreversível. Em outros casos o “ reconhecimento “ ( Agnórise ) vem precipita a acção através da revelação de algum facto ou vivência íntima, encaminhando-se para o desfecho trágico ( Epílogo ).

COMPONENTE TRÁGICA EM “APARIÇÃO “

“ Uma Língua é o lugar de onde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir “ ( Vergilio Ferreira )

Os Homens e os Deuses

Uma das dimensões fundamentais desta obra de Vergílio Ferreira é a componente trágica,neste livro que foi designado como livro da Condição Humana.
Desde a Antiguidade que cabe à tragédia uma função de reflexão profunda, sistematicamente virada para os grandes problemas e as relações dos homens com os deuses e dos homens com os homens. Embora não estando perante uma tragédia, no sentido estrito e técnico da palavra, há afinidades entre a história narrada e o universo da tragédia. Esta afinidade, mesmo dada à estrutura narrativa muito própria de Vergilio Ferreira em “ APARIÇÃO “, pode detectar-se no desenrolar dos acontecimentos que integram a narrativa deste romance.

Neste sentido, descobrimos em “ APARIÇÃO “ essa vivência trágica, na linha dos princípios estabelecidos nas constantes da tragédia estudadas e simplificadas pelos estudos de autores mais recentes.

- “ Tudo o que é forte e decisivo acontece como ter fome “.

- “ Quando me deitei e apaguei a luz, o convite do Chico para fazer a conferência incendiou-me o alvoroço. Tinha ali uma oportunidade de pôr em ordem o que me excitava. Um dia poderia desenvolver as minhas ideias num estudo mais longo: agora precisava de as fixar nos pontos capitais. E foi isso que desencadeou toda a história que narro".

Centremos a atenção sobre as personagens fulcrais da acção: Alberto Soares, Sofia e Carolino.
Alberto Soares, professor em início de carreira, chega a Évora, a cidade Ermida, onde passará, a nível diegético, o tempo medido de um ano lectivo. Também o que desde logo se torna evidente é o Espaço que não pode ser entendido no sentido linear das categorias da narrativa tradicional, pois o narrador - autor subverte-o, ganhando outras dimensões míticas e simbólicas. A vivência trágica projecta-se no próprio espaço evocado, por, em muitas passagens, envolver e projectar animicamente personagens e acontecimentos. E só para as personagens trágicas individualizadas a paisagem se reveste de características trágicas.

- “ O Alentejo era trágico, não lírico, só uma praga, a blasfémia ardente o exprimiria “.
- “ E ali parado, em face da cidade perdida na planície, era como se ouvisse em mim um coro de peregrinos, à vista de um santuário nas romagens antigas “.

Paisagem trágica, quando a planície se submerge alucinada de fogo e o velho calor alentejano, “sólido”, se agarra à terra, com um ódio tenaz.
O Alentejo, Évora, a casa, o café...., espaço virtual, se não fossem os nomes a chamarem-nos à realidade, à história, à “ terra calcinada “, deserta, estéril (....) "o teu destino de desastre, Sofia “.

- “ E agora que escrevo esta história à distância de alguns anos ......”.

A acção é cadenciada no tempo, pelas estações do ano. - “ Venho em Setembro, como da primeira vez.“. O complexo universo do protagonista Alberto Soares reporta-nos à vivência de um tempo passado que se torna presente pela memória.Alberto Soares, em Évora, vai ser um revelador. Pela sua mediação, as personagens vão fazer a descoberta do próprio mistério com as consequências que advirão dessa descoberta. A categoria menos elaborada nos romances de V.F. é a “ acção “, o que parece paradoxal, mas não tanto, se atendermos às palavras do escritor: “ É-me absolutamente incomportável, primário, infantil, um romance que me conte ainda uma “ história" .

Contudo, não deixam de ser verdadeiras narrativas ,uma vez que têm personagenxs desenvolvendo-se, no espaço e no tempo, que, com os mais ingredientes narrativos, vão tecendo uma história, no sentido romanesco do termo. Mas, é só a partir do alvoroço intelectual em que o lançou o convite do Chico e agarrou “ a oportunidade de pôr ordem no que me excitava “.

“ ALEA JACTA EST “

Tomando como ponto de partida o Cap. III, deparamos com o que poderíamos classificar, como Prólogo do desenrolar trágico dos acontecimentos.
No Café “ onde viria a instalar-me para sempre “, Alberto Soares encontra o Dr. Moura e é Sofia que aparece, premonitoriamente , em primeiro lugar... “ que também faz versos....” Então sumaria, em expressões incisivas o itinerário futuro de Sofia: “ Luz do meu Inverno ....olhar ácido de pecado... canto ardente iluminado de loucura.... mistério da vitória e do desastre, da violência do sangue...a angústia do teu grito contra os céus desabitados ?.....”. Mantendo um espaço interior, aceita o convite e vai jantar com a família Moura. A noite envolve-o a planície que exerce sobre ele uma sedução não totalmente nova:.. “ a montanha e a planície falam a mesma voz primordial “. Tudo se encaminha a nível do discurso para o evocar, emocionado, a memória de Cristina, “ a voz mais perfeita de tudo quanto me aconteceu “. Logo chega Sofia “como numa expectativa de teatro“ salientando a exuberância dos atractivos femininos, numa sedução antecipada a que depois se rende como algo de fatal ligado ao futuro das personagens.Um alarme interior soou, quando, ao apertar a sua mão com calor, se sentiu subitamente infeliz. A mão do destino servir-se-à do latim, para os juntar mais tarde
Sofia, pela sua maneira de ser e de agir, devido ao meio fechado em que se encontra, desafia toda e qualquer regra, quer no plano dos homens quer no plano dos deuses. Sofia constitui uma desafio permanente, inconscientemente, desde a “criança difícil", no dizer do pai, aos seus caprichos de garota e todos os desvarios, os excessos que, numa rebeldia natural, marcam a sua futura personalidade de (quase) adulta, na altura dos acontecimentos fatais. Apercebe-se de que tem um destino a cumprir e esse destino leva-a a desafiar tudo e todos. Desaparece de casa após a repreensão da mãe, e por ter aparecido de vestido roto diante das “pessoas de cerimónia“. Quando o pai falava de morte (....) "ela sorria com ar distante, separado, de uma louca “. Metem-na num colégio. Tentou suicidar-se duas vezes ...” melhor que à náusea das compensações mundanas, preferias o absoluto da destruição“.

- “Com o teu riso fresco , os teus olhos vivos de inocência e perversão."
- “Bela como a perdição, como todo o pecado “.

Assim vemos que, simultaneamente, Sofia obedece, com a sua personalidade, a outra característica da tragédia: é nobre de carácter. “ Mas Sofia sabia-se excepcional (....) Eu sei o que quero. Eu sei ! ” (16). Mulher de corpo inteiro e sedutora: “Por isso se vestia em perfeição, destra e aguda, disparada desde os saltos altos aos seios agressivos, aos olhos rectos e lúcidos. E eu sentia que tudo o que é vivo em terra estava ali presente no seu corpo".

“Quando querem destruir alguém os deuses começam por enlouquecê-lo “(EURÍPEDES ).

Carolino, que aparece com o desenrolar dos acontecimentos, só por si constitui o que é, por definição, uma “ personagem trágica “. Aluno do Dr. Alberto Soares como Sofia, e primo de Chico. No decorrer da narrativa aparece estrategicamente, quando se fala do suicídio do Bailote e se nota a sofreguidão e espanto estampados no rosto do Bexiguinha a querer saber o que se tinha passado: “-Que foi ?Que foi ?”. O professor divaga sobre a necessidade de “ajustar a vida à morte... e ver a harmonia de ambas".


Não entendia, mas foi ouvindo, interiorizando, exprimindo-se numa linguagem atribulada a prenunciar, talvez, a loucura que o viria a possuir e (des) controlar. “ Eu estava atónito, porque sentia em Carolino...loucura". Carolino: - “ Eu não digo que se mate, senhor Doutor, eu não digo isso. Digo que matar é igual a criar “. Na sua loucura desafia os deuses, na forma mais extrema e fatal de desafiar as leis dos deuses e dos homens.” Alberto Soares compreendia-o. A ironia baixa de Chico sobre as galinhas ferira profundamente Carolino, no seu amor próprio. Queria “sentir-me bem de dentro para fora, descobrir a “pessoa” que está em mim “. O desafio de Carolino, atinge mais acuidade, quando se sente igual aos deuses:
“ -Já não há deuses para criarem e assim o homem, senhor Doutor, o homem é que é deus porque pode matar”. Este e outros comportamentos constituirão, só por si, um indício da tragédia que se irá desenrolar. É a destruição que o domina contra a realidade primordial que é a vida: “- A vida é um milagre fantástico - disse eu - a vida é um valor sem preço", contraporá Alberto Soares.

- “ Que maldição pesa sobre a assunpção do nosso destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?, sobre a evidência da nossa condição”?

Esta reflexão do narrador pode-se aplicar, igualmente, a Sofia, Carolino e Alberto, na tentativa de se compreenderem. O desafio foi demasiado longe e tinham que ser castigados (Nemésis). O papel do destino, no desenrolar da tragédia,é esparso. É desvendado pelos acontecimentos que, em crescendo, que precipitarão a catástrofe final. Alberto Soares é um elemento perturbador e agente do destino, enquanto irá despertar o inconsciente adormecido das personagens ,o se torna numa maldição punível.

Da análise das personagens Sofia, Carolino e Alberto Soares, ressalta uma série de elementos e identidade a que se ajustará um final trágico. O conjunto de capítulos XIV a XXI no desenrolar da acção ,o que é relativo, na economia da narrativa de Vergilio Ferreira, dada a densidade trágica de quase todo o romance. E é na angústia da descoberta de si mesmos, o terem de viver aquilo que são,sem nunca o conseguirem, que vai ser o elemento essencial do sofrimento ( Pathos ) em que irá clarificar a componente trágica. Verifica-se então uma aproximação cada vez maior de Sofia e Alberto Soares numa “união trágica e blasfema “ e a quem Sofia chama: “ - Meu querido assassino (...) meu bom assassino”, que marca o primeiro “ reconhecimento “ (Agnórise) de Alberto como agente do destino.
Em relação a Carolino, intensifica-se a relação professor - aluno , e ultrapassa a mera relação mestre/discípulo, entendendo o a morte como destruição, como réplica negativa do acto criador de Deus. tendo como ponto culminante a morte acidental de uma galinha, frente à qual Carolino fica fascinado. Mais um “indício“ que vai levar à quase ruptura de Alberto com Sofia, o que acabará por acontecer, vindo Carolino a ocupar o lugar deixado por Alberto. Devido certa desorientação interior, o protagonista retira-se para a casa do Alto. Em todo o capítulo XVII, tenta analisar todas as suas incertezas, memórias velhas, e saber se, ao fim de contas, escreverá para alguém : “ Não escrevo para ninguém, talvez, talvez...”.

“ Morre jovem o que os deuses amam”. ( Fernando Pessoa )

Nesta precipitação fatalista, vários indícios trágicos antecedem a morte de Cristina. Cristina morre quando "os campos estalavam de fecundidade ! “. É a primeira vitima "trágica" sem literariamente o ser, numa história que quase lhe passa ao lado.Por acidente aparece no mundo, por acidente o deixa. Vítima inocente:”...uma criança era o bastante para erguer o mundo nas mãos e que alguma coisa no entanto, a transcendia , abusava dela como de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas “.


"A MINHA HISTÓRIA ESPERA-ME MAIS TERRÍVEL QUE NUNCA, DISPARANDO PARA O SEU DESFECHO “. ( Alberto Soares )



No capitulo XIX, Alberto recorda “ tudo desde que chegara a Évora”, quando todos abandonaram a cidade. O destino põe frente a frente Alberto Soares e Carolino, numa preparação próxima para o desenlace. Bexiguinha tenta assassinar o professor. Alberto Soares começa a dar sinais de auto-culpabilização: “ mas eu sentia obscuramente que apenas me esbofeteava a mim “. E, para Carolino: “ o teu crime era contra a vida,contra o absurdo que te assolou. Mas eu não queria isso... Pela primeira vez terá tido a noção do peso da sua influência sobre aqueles que elegeu para seus discípulos . E desta responsabilização nunca mais se irá libertar, como profetizara Chico : “- Não pense que isto fica por aqui. Você é o responsável por tudo quanto acontecer.” Ao que Alberto Soares encolheu os ombros, desandando solitário por uma cidade que lhe pareceu despovoada e inventada a desastre e a espectros “.
Tudo se precipita. A relação entre Carolino e Sofia acaba e as culpas recaem, indirectamente,pela boca do reitor, em Alberto Soares, apesar da loucura dos dois jovens. Uma inquietação crescente vai-se apoderando das personagens: Carolino e Sofia “destruíam-se com o seu protesto, mas recusavam-se a renegar o seu destino, morriam no combate, mas não pretendiam salvar-se fugindo desse combate “ (32). Estão definitivamente “ fulminados de maldição “ de castigo .

“Que maldição pesa sobre a assunção do nosso destino ” ?

Férias. Sofia reaparece e nos últimos três capítulos os acontecimentos acumulam-se.
Sofia assume cada vez mais a sua própria loucura com uma tentativa frustrada de suicídio. É o destino que marca o encontro com Alberto,através do convite de Alberto Cerqueira. A última vez que Alberto a vê “ num banco secreto de jardim. Estava com Carolino “. O protagonista lembra o telefonema recebido no liceu como prenúncio de todo o desfecho: “ - Só você é responsável. Só você “ (35). Este “ aviso absurdo “, eco do aviso de Chico, constitui um segundo “ reconhecimento “. Com a notícia da morte de Sofia, a tragédia atinge o seu clímax: “ Sofia apareceu num caminho que parte do chafariz de El-Rei, assassinada a punhal “.

Carolino foi o autor do assassínio, e“ morre “, psicologicamente, no auge da sua loucura. Ele é o instrumento do destino que tinha necessariamente de atingir Sofia, porque a ameaça de morte violenta pesava sobre ela com a força da fatalidade inexorável.
Alberto não é notificado para o julgamento, mas o remorso, o sentido de culpa e aniquilamento acompanham-no ao longo de toda a narrativa. “ Eu, porém, não queria envenenar-te , ao contrário do que depois se afirmou. Grito daqui aos que me acusam, grito-o com toda a força, uma igual e invencível como a desta montanha na noite “ (38). O protagonista afasta-se de toda a acção trágica, mas a memória, avivada pela emoção acompanha-lo-à:“O espaço esvazia-se até ao limiar da memória onde alastra o meu cansaço, o afago quente de um choro, o aceno de sinais que se correspondem como ecos de um labirinto. Num oblíquo aviso afloro o que estremece sob os gestos enfim apaziguados. Évora. Évora ".
Saliente-se o modo como o narrador comenta o desenrolar dos acontecimentos, num tempo de distância e memória , à maneira do coro na tragédia grega.
- “ Voltar para Évora. Como? Ah não !. Era o cúmulo “. No entanto o narrador leva-a na alma, em chamas, sonhos, de “ olhos saqueados “, longe de Prometeu-em direcção ao Cáucaso- castigado pelos deuses,por que lhes roubou o “ fogo” sagrado para o dar aos homens.
Assim a tragédia atinge o EPÍLOGO.


“ ADEUS, REITOR . ATÉ SEMPRE “.

O autor é condenado a partir, rumo à contínua procura e descoberta de si mesmo, no, da sua condição humana, sem deuses para o salvarem. Não resistirá à tentação de reentrar no mundo da inocência perdida...com saudades da Harmonia e da Ordem metaforizadas no canto e na música, desde Chopin tocado por Cristina, aos coros dos ceifeiros e dos cânticos de Natal na sua aldeia: “ Os cânticos irradiaram de novo na Igreja, abrindo no adro como uma grande flor de neve “.
Volta para Évora, de onde nunca saiu. “A noite avança, a minha cidade arde sempre.(...) Mas não sabia eu que ela devia arder ?(...) O que sei é que a morte não deve ter sempre razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens ”.

VOLTARÁ EM SETEMBRO, COMO DA PRIMEIRA VEZ.


Setúbal, 06 de Janeiro de 1998

João Magalhães Gonçalves
_____________
(1) Na elaboração deste trabalho foi usada a 29ª edição de APARIÇÃO, Lisboa-1994

terça-feira, 9 de março de 2010

JORGE DE SENA - Poemas

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Van Gogh

NO PAÍS DOS SACANAS

Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.

No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena

Post-it de Jorge de Sena:
«O problema não é salvar Portugal,
é salvarmo-nos de Portugal»

JORGE DE SENA

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O CONTO
“HOMENAGEM AO PAPAGAIO VERDE”
DE JORGE DE SENA

Ana Paula Rosa
João Magalhães Gonçalves
Maria Aldegundes J.R. da Fonseca
Raul Mendes


1 . BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIA


Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 2 de Novembro de 1919.
É filho único de uma família da alta burguesia com presunções aristocráti¬cas, por parte do pai e, por parte da mãe, de poderosos comerciantes portu¬enses.
O pai, oficial da Marinha Mercante, planeia para o filho, à nascença, a carreira mais alta da Marinha de Guerra “o futuro paralelo a tudo o que eu seria/ para satisfação dos meus parentes todos” (Poesia II, pág.65).
Concluídos os estudos no Liceu Camões, Sena entra para a Escola Naval, aos dezassete anos, onde se defronta, pela primeira vez, com a dureza da disciplina militar que viria a des¬pertar nele o espírito inconformista e revoltado que o acompanharia, ao longo dos anos. Não, talvez, pela disciplina em si, mas pela forma cega e despótica com que era aplicada, sem a dimensão humana que sempre comprometeu Jorge de Sena, na criação literária e na vida: “Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito que qual quer vida humana” (G.C.pref.71 , pág.19(1). E o R.D.M.(2) é tudo, menos uma cartilha dos direitos do homem. Este terá sido o primeiro medir de forças com as estruturas envolventes e asfixiantes do regime finalmente vitori¬oso de 1928, data-memória do conto “Homenagem ao Papagaio Verde”.
Em contrapartida, é dessas viagens, efectuadas como cadete da marinha, que irão aparecer reflexos importantes das experiências então adquiridas, em narrativas escritas anos mais tarde.
Em 1938 é demitido da Marinha de Guerra, nas sequelas da “Revolta dos Barcos” e a pretexto de falta de ginástica.
São particularmente difíceis, para Jorge de Sena, os anos 40. Inicia o Curso de Engenharia Civil em Lisboa, vindo a completá-lo no Porto, em 1944. As dificuldades de ordem económica agudizam-se. Vem depois o serviço militar no Exército, em 45.
Em 47, terá o seu primeiro emprego. Entra para a J.A.E. em 1948 onde terá que permanecer até 1959. Como engenheiro, Sena faz parte, antes do seu exílio para o Brasil em 1959, da equipa que planeou a ponte sobre o Tejo.
Já no Brasil, fixa-se como catedrático, primeiro em Assis e depois em Araraquara, no Estado de S. Paulo. É uma mudança radical na sua vida com o Mar Atlântico em fundo que catalisaria a sua moltímoda e a riquíssima obra, naquele “desespero de ser-se humano/ entre os homens que o são tão pouco”. Talvez aqui acabe ou se reforce a longa série de CAPITÃES... “capitães da marinha, do exército, da indústria, do ensino, etc, cuja missão se cifra em temperar-me num desprezo imenso da humanidade oficial com alvará para espezinhar e oprimir” (As Ittes e o Regulamento, 55).
Em 1965, decide partir para os Estados Unidos, fixando-se em Wiscousin, sempre e cada vez mais pre¬ocupado com os destinos do seu país.
“A força serena de sua mulher e seu suporte intelectual, durante 30 anos, Mécia, amparou-o na sua doença final, contra a qual lutou com a mesma raiva lucidamente sardónica que sempre des¬feria contra outras indignidades: hipocrisia, estreiteza de vistas, injustiça”. (Stephen Reckert).
Em 1970, muda-se definitivamente para a Universidade da Califórnia (Santa Bárbara). Aí viria a morrer, em 4 de Janeiro de 1978.
* Espaço Autobiográfico
“Toda a vida é uma história de infância”. (Fernão de Magalhães)
“Falo de mim em tudo o que escrevo”. (Eduardo Lourenço)
Sem querer encontrar paralelismos simplistas, a verdade é que em “Homenagem ao Papagaio Verde” o A. que fala de si naquilo que escreve, parafraseando Eduardo Lourenço, amalgama situações reais (“o papagaio verde foi meu”) com vivências e experiências distantes no espaço e no tempo, disfarçadas na história contada e que são transmutadas pela ficção, com a colaboração cúmplice do narrador.
Não é um conto meramente autobiográfico, uma confissão memoralista, pois reduziria a pouco, o muito que o A. quer revelar. A linearidade das datas, os acontecimentos cronometrados falsificariam a visão alargada “do mundo em que vivemos e da vida que nos foi dado ter ou a que nos foi dado assistir, nele”.
Há, sem dúvida, uma componente autobiográfica neste conto, como aliás em toda a obra de Jorge de Sena. O texto, como realização autónoma, facilmente se evade do “biografismo” através da imaginação. É mais esse coeficiente de imaginação, que conta, o que o coefi¬ciente e utilização do material autobiográfico, como entende David Mourão Ferreira. “Se a matéria de “Os Grão-Capitães”, é directa ou indirec-tamente auto-biográfica, a estrutura que lhe é dada é inteiramente ficção”. Mas essa imaginação passa pela experiência do A. e só nesse aspecto é que se pode dizer que tudo é, em parte, autobiográfico. É desta alquimia da realidade e da fantasia que resulta em Jorge de Sena o realismo integral que reclama para os contos de “Os Grão-Capitães”: “Nenhum realismo o será, se recuar aflito, mas porque, aflito, não recua”.
Jorge de Sena não “diz”, mas quer que fiquemos a saber que a sua infância foi dura e brutal, humilhante e per¬manentemente instável como o resto da sua vida.
O espaço reduzido e concentrado, em que se movimentam as personagens, sobretudo o rapaz e o papagaio verde, aparece, pela magia da criação estética, a encenar uma luta radical e premonitória de superação em relação ao destino; luta sublinhada na metáfora do “cacho humano” do qual virá a libertar-se pela imagem viva, redefinida e sempre recriada do “Papagaio Verde”. Ele será, aliás, o seu anjo da guarda dali em diante. Uma memória verde, humana, a ressuscitar com promessas de vida, depois de todos os invernos de solidão e abandono.

2. O TEMPO E A FICÇÃO

* Referências cronológicas

No fim do conto “Homenagem ao Papagaio Verde”, Jorge de Sena ins¬creveu as seguintes datas: Assis, 03.06.61; Araraquara 25.06.62.
É o próprio autor que, nos prefácios da obra Os “Grão-Capitães” (contos), identifica e explica essas referências cronológicas. Assim, no “PS 1974 ao Prefácio que se segue” pode ler-se: “Escrevi estes contos, em 1961-62, na atmosfera de um Brasil livre (...)”. E, no Prefácio (1971), Jorge de Sena especifica ainda melhor: “Em Março de 1961, surgiu-me o primeiro conto de “Os Grão-Capitães” cujos textos igualmente havi¬am esperado longamente pelo tempo material para serem definitivamente escritos e concebidos (esta ordem tem significado, porque nunca concebi nada, antes de começar a escrever). E a aparição e realização deles prolongou-se até Junho de 1962, quando foi revisto o conto “Homenagem do Papagaio Verde”.
Portanto, o tempo da escrita ou da criação literária abarca pouco mais de um ano (Março de 1961 a Junho e 1962), sendo esta última data do conto que vamos analisar.
Por outro lado, na portada do conto, o autor escreveu a data: Lisboa, 1928.

* O tempo da narração e o tempo da história
O tempo da narração não está cronolo¬gicamente expresso no conto, mas depreende-se que é posterior à acção pelo uso das formas verbais: pretérito perfeito, pretérito imperfeito e pretérito mais-que-perfeito. Além disso, o discurso do conto sugere a distanciação entre o tempo da história e o tempo da narração, como se pode ver nas seguintes passagens: “(...) (mais tarde, esse primeiro mistério da minha infância passou a ser celebrado na Escola de Medicina Veterinária, já com os requintes da assepsia)”, “(...) cujo sentido eu não sabia então claramente. A vida, desde então não me esclareceu muito”.
A distância entre o tempo da narração e os “factos” narrados também se nota em certos juízos do narrador sobre alguns momentos da história, bem como em processos estilísticos sugestivos como acontece no humor sarcástico da descrição da cena do bofetão dado pelo tio.
As datas referidas por Jorge de Sena (1928-1961/62) não pertencem ao texto do conto, mas o autor conseguiu expressar bem o distanciamento entre o tempo real da escrita (tempo da narra¬ção?) e o tempo fictício da acção (1928).
Jorge de Sena é bem claro no “PS 1974 ao Prefácio que se segue” sobre a data de 1928 inscrita na portada do conto: “Pelas datas fictícias que na portada de cada conto vão inscritas, a acção deles cobre um quarto de século de 1928 a 1953”.
“Se a matéria de “Os Grão-Capitães” é directa ou indirectamente autobiográfica (...)” , a data de 1928 remete-nos para a infância do autor então com nove anos. O discurso do conto comprova-o em muitas frases do narrador: “No começo das minhas memórias de infância (...)” ; “Não chegara ainda à adolescência (...)”.
As próprias peripécias da acção: vida do Papagaio Verde, relações familiares e aprendizagens do narrador sugerem um tempo bem mais longo do que um simples ano contado pelo calendário. Por conseguinte, a ambiguidade do “tudo aconteceu quase assim” e da “distância que vai das memórias à ficção” também está bem expressa no tratamento do problema: o tempo neste conto, quando relacionado com as referências cronológicas inscritas pelo próprio autor.

* Acção e Acções...
“Homenagem ao Papagaio Verde” apresenta uma introdução, em que se situa a acção na infância do narrador e se descrevem os dois papagaios, alongando-se mais na caracterização do Papagaio Verde; a acção propriamente dita e uma conclusão, em que se ilustra a “herança” de revolta que o narrador recebeu como legado do seu amigo Papagaio Verde.
O processo utilizado na narrativa da acção ou enredo da história revela uma alternância entre os “factos” que se repetiam com certo ritualismo (chegada do pai, discussões domésticas, visita dos primos, ida à escola, curativos do Papagaio Verde) - narrados no pretérito imperfeito e expressos em informantes de tempo bastante vagos: depois... daí em diante... às vezes... - e os “factos” únicos, os momentos nucleares da acção, que são pequenas sequências narrativas que fazem avançar a história ou marcam profundamente certo período da vida do narrador, e que são contadas no pretérito perfeito e situadas no tempo em expressões ainda indefinidas, mas menos vagas que nas acções repetitivas: uma vez (caso da fúria contra as criadas), certa manhã (o papagaio soltou-se), uma tarde (sova no Papagaio Cinzento), uma vez (pontapé no baixo ventre), não chegara ainda à adolescência (doença do Papagaio Verde, um dia (morte) e uma tarde (bofetão do tio).
Neste fluir da acção entre acções repetidas e casos marcantes, a intimidade entre o narrador e o Papagaio Verde e o “transfert” ou projecção da revolta do papagaio para o narrador, o processo utilizado foi sempre o de uma gradação crescente.

3. DOIS MUNDOS EM CONFLITO

O mundo dos adultos
O narrador insinua-nos, desde o começo da sua narrativa, uma dicoto¬mia entre o mundo constituído pelos adultos que o rodeavam e o seu próprio universo infantil, dominado pela presença do Papagaio Verde.
Pais, tios e criadas são por ele observados com um certo distanciamento, a que não falta mesmo uma objectividade mordaz. Eles pertencem a um mundo povoado de pessoas “(tão) caprichosas e volúveis, (tão) previsíveis, (tão) ilógicas, (tão) hipocritamente cruéis”, que possuem “... uma tendência manifesta para falarem de cor e a despropósito...”, apesar de o cercarem de “...solicitude e clausura... “ , numa casa onde muitos dos espaços lhe são interditos. Daí, que eles não mereçam da sua parte qualquer sentimento de apreço, tal como se pode observar através do discurso valorativo atrás citado.
Apesar do maior contacto e melhor relacionamento com a mãe, cuja presen¬ça física é permanente em casa, ele danos dela um retrato de uma mulher submissa “... que ficava perfilada ...” aguardando o pai sempre que este voltava de mais uma das suas viagens. Outras vezes, ela é apenas a vítima que se entrega ao sacrifício quando, cabis¬baixa, se dirige para o quarto onde o marido a aguarda, ansiosamente.
Ele vive um casamento sem amor onde a comunhão de ideias e desejos não existe. Ela cumpre apenas as suas obrigações. Daí que, recatadamente, chame a atenção do marido para a presença do filho, tentando refrear o desejo do macho sempre que, depois de mais uma ausência, ele regressava a casa. Outras vezes ela é a fada do lar, embora com poderes limitados, exercendo o seu débil domínio sobre as criadas, numa tentativa de demorar o sacrifício que a espera “Ele a chamar, ela a repetir pela centésima vez (...) as instruções para o jantar”. De personalidade pouco vincada “... apresentar-se de cabeça erguida fosse onde fosse era contra os seus princípios”, as lições de piano do filho são a única tentativa de rebeldia à vontade do marido e dos cunhados, lutando assim contra o mundo masculino que a subjuga. “E eu recomeçava, aos fins de tarde, as idas a casa de D. Antonieta, para a lição de piano, que a família toda, com meu pai à frente, achava uma indignidade mulheril e que era a única manifestação de teimosa independência por parte da minha mãe”.
O pai, pelo contrário, é um homem dominador e autoritário. Mal chega a casa, dá “recomendações acerca das fardas brancas que tinham de ser todas lavadas e engomadas”. A conjugação perifrástica com o verbo auxiliar “ter”, tal como o determinante indefinido “todas”, realçam bem os traços da sua personalidade.
Ele é o chefe a quem todos respeitam e devem obediência, mesmo os familiares que apenas visitam aquela casa, a propósito de mais um dos seus regressos, depois de mais uma das suas viagens. É um pai mítico que a criança apenas vê à hora de jantar, “durante uns quinze dias, de três em três meses “. Dele recorda, sobretudo, a violência do discurso e dos actos que atingem constantemente a mãe perante a concordância submissa dos tios “Palavras viperinas circulavam, meus tios levantavam-se também, com uma autoridade moral em que compensavam a sujeição dos muitos auxílios e jantares que meu pai lhes dava”. Ele é, pois, o Patriarca da família a quem não falta sequer uma “estatura corpulenta” para reforçar o seu domínio.

* A relação do casal
É uma relação marcada pelos padrões culturais burgueses da estrutura familiar do princípio do século - o homem é o chefe, a mulher serve apenas os seus desejos, submetendo-se inteiramente aos seus caprichos. Ela não é, de modo nenhum, a companheira que partilha de um projecto a dois. É, pelo contrário, uma mulher castrada no seu estatuto social e familiar, sem dignidade própria, numa sociedade que valoriza apenas o elemento masculino.
A relação entre o casal torna-se cada vez mais violenta, à medida que as vindas do marido são mais frequentes “As luas-de-mel eram agora curtas, rápidas, tumultuosas”. A adjectivação tripla revela-nos bem a graduação dessa violência que, a princípio, é feita apenas de palavras e de gestos, aumentando depois com o pai levantando-se e atirando com a cadeira, para passar à violência física “com (meu) pai no corredor, de faca da cozinha em punho, (...) provocando os protestos da vizinhança (...) até que os vizinhos de baixo viessem protestar contra o barulho”. Nela falham o amor e o respeito enquanto abundam a agressividade e o autoritarismo. A utilização dos códigos ideológico e conotativo estão presentes na descrição desta micro-estrutura familiar, fechada e una, dominada pelo chefe que metaforiza uma outra macro-estrutura - a do próprio país.

* A relação pai/filho
É uma relação difícil, não conseguida, que isola o filho cada vez mais do seio da sua própria família.
A princípio, o regresso do pai ainda lhe provoca uma certa curiosidade, embora odeie a expectativa que o envolve. Mas, à medida que as vindas do pai se inten-sificam e, com elas, a agressividade daquele em relação à família, dá-se a ruptura total entre si e o seu progenitor. O jovem insurge-se contra a sua autoridade atingindo o pai com um “pontapé no baixo-ventre, que o fez, num urro, largar a faca...”. O discurso conotativo é de novo utilizado para nos narrar este episódio que simboliza o ódio da criança pelo pai e pelas suas encenações de “commedia dell’arte” que, habitualmente, realiza. Ele apresenta-nos um pai que não é, de modo nenhum, um modelo de identificação, mas antes, uma personagem, na maior parte das vezes, ausente e sempre distanciado afectivamente do filho.

* A relação pais/filho
O rapaz sente-se joguete nas mãos dos pais “... a puxarem cada um por um braço (meu), cada qual exigindo que (eu) desmentisse o outro”. Em vez de respeito, sente por eles medo e ódio. É nas suas discussões que ele descobre o significado dos palavrões do Papagaio Verde. “Não foi assim, na escola ou na rua, que eu aprendi os nobres palavrões essenciais à vida, embora me ficasse, para aprender depois, algum sentido deles. Aliás, este sentido eu ia apren¬dendo adivinhadamente nas discussões domésticas, à porta fechada, entre minha mãe e meu pai, quando ele, do outro lado da porta, os bradava, e muito explicados em frases elucidativas”.
Na maior parte das vezes, ele sente-se junto dos pais, “... como uma espécie de plenipotenciário encarregado de negociar a paz de uma guerra cujas causas (...) não entendia”. Sente-se totalmente ignorado por eles: “Ninguém me perguntava ou me ensinava a perguntar o que eu queria ou o que eu pensava....”.
A educação que lhe é ministrada baseia-se, sobretudo, na obediência, não lhe deixando lugar à criatividade nem à autonomia. Chega mesmo a sentir-se “... como a bandeira branca que, depois de brandida e de sentir efeito, fica no chão, entre os cadáveres, as cápsulas, o lixo das guerras modestas e localizadas”. O desalento do jovem é-nos revelado através das metáforas utilizadas. Ele é a “bandeira Branca” que pode alcançar a paz, mas que, depois da luta, perde o valor e fica perdida no meio do lixo de uma guerra doméstica, sem valor.
Outras vezes, ele sente-se ainda o réu de uma relação infeliz e fracassada que fica “... atemorizado e trémulo ouvindo falar de colégios internos, de proibições de brincadeiras, da suspensão das lições de piano...”. Reage fortemente contra os pais e o resto da família a quem detesta, e insurge-se contra a estrutura que o oprime “Eu declarei categoricamente que os detestava a todos...”, chegando mesmo a lutar contra cada um dos elementos dessa cadeia. “Lutei contra ele que me agarrava, e contra meu pai que o agarrava a ele, e contra minha mãe que agarrava meu pai, e contra minha tia que os agarrava a todos.”
Inconformado, o rapaz reage contra um sistema de valores que não aceita naquela casa “...triste e soturna...”, onde se sentia um prisioneiro: “...eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme do meu presídio)...” E, isolando-se total e gradualmente da família, procura no Papagaio Verde a amizade que aquela lhe rouba.
4. UNIVERSO AFECTIVO
No conto, o narrador retrospectiva um segmento do seu passado, correspon¬dendo esse segmento à sua infância e pré-adolescência. Nesse decurso da sua vida, o relacionamento com a ave tornou-se o centro do seu mundo.
No ponto anterior analisou-se a orga¬nização familiar em que a personagem aparece inserida, repercutindo-se num comportamento defensivo e inibido, alheio às manifestações típicas de energia e jovialidade próprias da criança que consideramos normal.
Nesta linha de ideias, a singularidade do conto transporta-nos para um universo afectivo pouco vulgar: uma interde¬pendência evolutiva entre uma criança e uma ave que, de mero animal de estimação, a princípio sem nome e confinada à varanda da cozinha, vai ganhando um estatuto de companheiro de clausu¬ra: “Ficávamos (...) os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme o meu presídio), e ele, com gaiola pendurada alta (...)”, (o sublinhado é meu), e mais tarde de interlocutor, de cúmplice, de agente de subversão do poder instituído; em suma, de “personalidade animal”.
Homenagem ao Papagaio Verde inscreve-se por isso, a meu ver, no âmbito das ficções que se ocupam do fecundo universo de solidariedade ou empatia, que homens e animais podem criar, focado por autores como Juan Ramón Jimenez (Platero e eu) e Jack London (O lobo do mar).
Aproximação dos dois seres, criança e papagaio, acontece por via de uma série de circunstâncias discriminadas no texto, e que apresentam em comum o factor contraste relativamente ao ambiente em que ambos estão inseridos. Assim, a cor garrida do animal opunha-se à soturnidade da casa, onde surgia como “uma nódoa insólita”; o reportório obsceno do bicho contrastava com a contenção verbal revelada em público; de igual modo, a sua dignidade de porte era oposta a certas atitudes de subserviência ou comportamentos ofensivos assumidos pelos adultos. Não menos importante é a capacidade que a imponente ave tem de exteriorizar afecto, num ambiente de extraordinária frieza de sentimentos: “(...) meu pai (...) roçava-se na testa uns lábios rios e o bigode esverdinhado, farto e retorcido nas pontas que ele frisava, e parava ao pé da minha mãe, sem jeito de abraçá-la.”
O papagaio começa a preencher a ausência de uma figura humana comunicante (figura de substituição) e ser objecto de um investimento afectivo crescente, que culmina na personificação plena, aquando da morte do animal: “Foi a primeira pessoa que eu vi morrer”.
Na linha de evolução do relaciona¬mento atingido, assistimos à progressiva conquista, por parte de ambos, de novos espaços territoriais e de um esta¬tuto de maior poder: “Fui, por extensão, pouco a pouco, sem cálculo nem método, conquistando o Papagaio Verde, e, ao mesmo tempo, o respeito já lendário que ele impusera à sua volta”. “Mas, quando eu o soltava, e ele andava por toda a parte atrás de mim, tudo ficava por nossa conta: minha mãe fechava-se no quarto, as criadas fechavam-se na cozinha”.
A relação evolui através da exploração de canais de comunicação básicos (carícias, esgares, posturas...) e outros mais elaborados (música,tos, que até “tinham raiva daquele entendimento”.
Acresce que o estreitamento do contacto criança/animal é paralelo ao distanciamento criança/mundo dos adultos e vida escolar. A dada altura da doença do papagaio, o próprio narrador refere a sua apatia e indiferença relativamente a esse outro mundo: “isto durou semanas que me fizeram às vezes faltar às aulas, não ouvir ninguém, não notar ninguém”.
Pelo que foi dito, concluímos que está patente no conto o tópico de marginalidade, valorizada como defesa da individualidade e condição de liberdade. Recordemos as conotações que o narrador atribui ao papagaio: evasão, exotismo, espontaneidade, independência...
Para terminar, numa perspectiva de intertextualidade, quero registar o paralelo entre esta história, cujo protagonista é um animal, e todo o vasto leque de parábolas educativas, onde também os animais veiculam uma lição, isto é, identificam/encarnam um ideal.

5. E UM POEMA NASCEU...
“O dom da poesia é uma conquista de quem o deseja, porque o ama” E. Melo e Castro
Ligado a toda esta “história” está, sem dúvida, o poema “LA CTHÉDRALE ENGLOUTIE”,a emergir da imaginação do poeta, pela magia impressionista de Debussy.
Há aqui paralelos claros e referências directas ao que foram os verdes anos de Jorge de Sena. Vem ao acaso a aprendizagem compulsiva da música, “imprópria de um rapaz...”, que se tornaria em mais uma arma de resistência ao mundo asfixiante que o rodeava, na companhia cúmplice e solidária do Papagaio Verde.
“LA CATHÉDRALE ENGLUTIE”, de Debussy

"Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entreViúva Alegre e Mozart,
o grande futuroparalelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na demais, imprópria e um rapaz
que era pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera
o Penson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e Salgari,
e o Eça e o Pascoaes. E lera também
nuns caderninhos que me erampermitidos porque aperfeiçoavam o francês,
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas do que eu era
a história da catedral de Ys submersa nas águas"(...).
(...) Excerto/Poesia II, pag.165

Este poema marca, na opinião de J. F. Lourenço, o Ano I a poesia de Jorge de Sena. É o que ele insinua logo na primeira estrofe ao regressar ao piano e à infância, ao tempo mágico da descoberta e o ponto de partida e de chegada de todas as infâncias e de todas as des¬cobertas, para situar na ignorância inici¬al “eu não sabia nada de poesia e literatura...” a rebeldia suficiente para estar atento a tudo o que fosse novidade e diferente, em leituras diversas e diversificadas: “Eu lia muito é certo”. Assim conhece “a história da catedral de Ys submersa nas águas”.
“Um dia (...) foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos, os cânticos, e o eco das abóbadas...”
Assim, nos dá conta o poeta, sem espaço nem idade, num realismo mági¬co, do início da mudança - através das realidades adivinhadas, fantásticas, dum mundo submerso e fantasmagórico a que a música de Debussy dava corpo e consistência - o que Sena jamais lhe perdoará. Nem esquecerá, nem saberá agradecer bastante “as fissuras da vida que se lhe abriram para sempre”.
A mudança é radical: “... nunca mais pude ser eu mesmo”. “Do jovem tiranizado e triste/ que viverá tranquilamente arreliado até à morte” emerge catapultado pelos compassos do prelúdio do impressionista francês “que os pedais faziam pensativos” a “soma teimosa do que não existe: exigência, anseio, dúvi¬da...”. Estes versos, e praticamente toda a estrofe, reflectem bem a insegurança interior, o drama que é a procura contí¬nua, a revolta sempre avivada na nostalgia do Papagaio Verde contra “esse lixo do mundo e papéis velhos/ que sai dum jarrão exótico que a criada partiu...”. Era apenas o começo. Ou o meio? Ou o fim? Nunca saberemos, porque a poesia não tem tempo nem idade. Nem zonas demarcadas, na obra multímoda de Jorge de Sena, pois “um género de escrita o levava a outro, como complemento de expressão” (Mécia de Sena).
O acervo de interrogações retóricas, antíteses, quase paradoxos a última estrofe, não escondem uma reconcilia¬ção íntima, cansada, reconfortante, pacificadora, se lermos os últimos versos, suprimindo os pontos de interrogação: “Eu hei-de perdoar-te. Eu hei-de ouvir-te ainda. Mais uma vez eu te ouço. Ou tu, perdão, me escutas.
Estes versos completam assim o “leit-motiv” do perdão “negado” e festejando no primeiro verso do poema. Isso constituirá para ele, quase um fado:

FIDELIDADE


“Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presençacom que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
.........
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria as mortos,se voltassem.
(Poesia II, pag.18)

A música que aprendeu na infância confirmou-o no seu destino de poeta.
Nesta poesia pode ainda notar-se, e a concluir, o nível estruturalmente discursivo, oscilando entre o neobarroquismo e o surrealismo.

CONCLUSÃO
“Homenagem ao Papagaio Verde” é uma “história de infância que revela um mundo interior pessoal (“eu”) e fictício (narrador) a partir de dados reais: a casa, o papagaio, a família, a escola... e a prisão domiciliária, encenando uma infância difícil, traumatizante, sufocada na estreiteza do viver dos seus e que era “pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público” (Poesia II, 165). Surge-nos o “jovem tiranizado e triste que viverá tranquilamente arreliado até à morte” (Poesia II, 166) que parece culpar a sua infância difícil de filho único-mimado como seria natural e não acontece - e domado externa e interiormente pela vigilância apertada da sociedade de uma época em decomposição “desse tempo de uma tirania que castrava Portugal”.
Os papagaios não têm memória. “Os homens, sim. É por isso que só eles podem escolher o seu lugar e o seu tamanho” (Fernão de Magalhães).
A liberdade adiada, o papagaio, o verde de todas as angústias e esperan¬ças impregnam, de uma forma obsessiva, não só toda a textura do conto, como constituirão as ideias-força do pensamento do humanista e lutador que foi Jorge de Sena.

"QUEM A TEM"

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
(Poesia II, pag.42)

O papagaio era dele. E a literatura tem destas artes: afinal, o papagaio não morreu. Sena prestou-lhe a HOMENAGEM de toda uma vida. Um legado de gratidão e responsabilidade que nunca mais deixará de lhe encantar e amargurar a existência.
OBRAS CONSULTADAS
CARLOS, Luís F.A., “Jorge de Sena e a Pirâmie no Inverso” in Colóquio/Letras, n° 104/105, Julho-Outubro, Lisboa, Gulbenkian, 1988;
CHEVALIER, J. e CHEERBRANT,A., Dictionaire de Symboles, Paris, Júpiter, 1982;
COELHO, J.E, “Jorge de Sena, Professor” in Colóquio/Letras, n°104/105, Julho-Outubro,
Lisboa, Gulbenkian, 1988;
GONÇALVES, F.M., Ser Torga, Chaves, Ed. Tartaruga, 1992; LOURENÇO, J.E, O Essencial sobre Jorge de Sena, Lisboa, INCM, 1987;
MOURAO-FERREIRA, D., “Entrevista” in Jornal Letras e Letras, ng101, Outubro, Porto, 1993;
PEDROSA, I.,“Dossier Eduardo Lourenço Revisitado”,in JL, Ano VI, nQ231, Dezembro, 1986;
SARAIVA,A.J. e LOPES,O., História da Literatura Portuguesa,Porto, Porto Ed., 1976.

(1) Todas as citações do conto “Homenagem ao Papagaio Verde” foram retiradas da Obra “Os Grão Capitães” (contos), Edições 70, Lisboa, 1989
(2) Regulamento e Disciplina Miliar

Trabalho apresentado em 1994 numa acção de Formação: “Estudos literários/Literatura Portuguesa Contemporânea”.
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segunda-feira, 1 de março de 2010

CULTURA E POESIA

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À flor do verso

A vida em versos

Não apenas em versos, mas em poesia, porque há diferença essencial entre as duas coisas. Há por aí muitos versos com pouca poesia. E também há poesia sem versos.
João de Magalhães Gonçalves é sacerdote franciscano, e a sua poesia tem por vezes o tom e a sabedoria da de S. Francisco de Assis, cujos ressaibos surgem em poemas como “Alverne”, ou “Em Belém”, ou “Com licença, irmãs formigas”. Mas nesta poesia em que a simplicidade se mistura com a atenção à vida, à natureza, às pessoas (muitos são os poemas dedicados a alguém, como a José Afonso, ou Sophia de Mello Breiner, ou mesmo “Ao meu Bispo” e a tantos que se lhe vêem amigos), topam-se os acontecimentos mais marcantes de uma vida que correu o mundo. A natureza mistura-se com a cultura (há ressaibos camonianos, como o de “Sôbolos rios”), com a Bíblia e a Liturgia. Mas há uma presença constante do humano, dos afectos e da amizade, “livro onde os valores culturais, religiosos e humanos se materializam na palavra “ (do Prefácio de Maria Aldegundes Fonseca). Há resquícios e espuma de viagens naquilo que elas têm de mistério ou emoção; há “esse caminho longe” que é o da vida ansiosa, da ausência, da saudade ou da esperança.
A densidade e simplicidade poética, a natureza afectiva e sensorial, o coração e o deslumbramento do olhar estão bem patentes no poema “Caminho e Cor”: “Era de aromas novas / a primavera / que deixaste atrás de ti, / e de cores sem fim e sem destino. / Natureza e seiva / vida / e o verde-esperança / a renovar / e guardar toda a verdade /no coração, esse altar votivo /da saudade”.
“À flor do verso” é o título desta recolha poética. Mas não se trata apenas de versos, mas essencialmente de poesia. (Correia Fernandes)

João Magalhães Gonçalves, À Flor do verso, Setúbal, 2009.

in VOZ PORTUCALENSE

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

NÃO SEI

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Van Gogh

Nem sei,
se o caminho
largo e comprido,
que percorri
já acabou...
Creio que não!

J. M. Gonçalves

domingo, 21 de fevereiro de 2010

URBANO TAVARES RODRIGUES

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Urbano Tavares Rodrigues

Biografia:

Nasceu, em Dezembro de 1923, em Lisboa, mas passou a infância
e a adolescência no Alentejo, terra da sua família, que o marcou para sempre como escritor.•
É professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, membro efectivo da classe de letras da Academia das Ciências de Lisboa, romancista, contista e ensaísta.•
Tem livros traduzidos em quase todas as línguas europeias e até em árabe e japonês. Os seus grandes temas, como ficcionista, são o amor, o tempo, a morte e os problemas sociais.
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

JOQUIM CARREIRA DAS NEVES

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Poeta da Vida

À Flor do Verso, de João Magalhães Gonçalves, é um verso maior de uma poesia referencial que é metáfora da Vida: Francisco de Assis, muitos com quem conviveu de perto, e neles descobriu o sorriso, a música sem fim…O poeta vê-se só, mas, paradoxalmente, acompanhado do encanto do narciso, das giestas, do botão da flor (grávido…do desejo de ser flor), do colo, da mãe, da bênção. O poema que melhor o define (se é que isso é possível) é o último: “Voltei, para agradecer”. Grande poema, soberba poesia! Embora só e, apetecendo-lhe fugir, estende “sempre a mão / à procura de mim”. O poeta escreve porque se vê na obrigação de cumprir uma promessa: “Dou conta da herança que recebi em testamento”; “A promessa e um dever:/ regressarei sempre / para agradecer;

Neste agradecimento (eucaristia da Vida), projecta a Bíblia que é o grande livro da Vida: Deus e os homens, esperanças e interrogações, cansaços do deserto e regresso à pátria, à Terra Prometida. O poeta reencontra o Horeb, a“fúria” de Job, a luz do Menino, a Samaritana (Jacob deixara / na memória de todos / um poço /à espera, / na plenitude do tempo, / de água e da vida / que viriam depois…),o Samaritano, os Magos, Belém, Filho Pródigo, “Pai, é eu”… mulheres da Ressurreição, o Cireneu, os discípulos de Emaús (poema extraordinário de existencialismo e dúvida), o leproso que agradece; “Sôbolos rios”, “Nunc dimitis” de Simeão, o pastor e o seu rebanho, “Senhora das Dores”.

Entre as figuras bíblicas e o mundo do poeta, nasce a esperança, a evocação de certezas escondidas, e, entre a floresta, a árvore sozinha, solitária, a precisar de água e raízes…e de uma África longínqua, perdida e sem identidade… perdida também na saudade de longes sem fim.
A esperança da liberdade, adiada, surgirá, a medo, num dia de Abril com a “liberdade desejada, em que os cravos nasciam / e passavam / de mão em mão, / mensagem rebelde e acordada / para um futuro sem nome / incerto / como a chuva de Maio”…

Ninguém pergunte pelo significado da grande música de Beethoven ou Bach. Ninguém pergunte pelo significado da poesia de João Magalhães, porque é poesia. Tudo é evocação, na palavra do poeta que vive os referentes dramáticos de desertos, esperanças messiânicas e vidas anunciadas. O poeta é, assim, mais um eco da realidade, em poesia sublime.

Joaquim Carreira das Neves, O.F.M.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

SONETOS MÍSTICOS - Adelino Pereira

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SINFONIA ALÉM DE MIM

Lúcido ingénuo louco à vela vou
para o país onde não há sois postos
lá realizarei todos os gostos
invisível gaivota ao vento vou.

Nu sem terra sem ouro num fácil voo
cantando a música do sol dos rostos,
matando a sede só com suco e mostos
da terra sou mas ainda lá não estou.

Oásis, paraíso, ilha ansiada
além dos mares brancos dos meus sonhos,
além do tudo mais que eu sou e que é nada.

Além, muito além, sou o que em mim ponho
lúcido ingénuo e louco ao fim do dia
vou sempre muito além da minha sinfonia.

UM SONHO DA TUA MÃO CRIADORA


Eu fui menino, a coisa mais bonita e encantadora,
eu fui criança, a coisa mais formosa e sonhadora,
eu fui pequeno de alma e corpo mais do que uma aurora,
eu fui como uma flor que abre e sabe que desflora.

Eu fui um inocente e um ignorante a toda a hora,
eu fui um caminhante livre pela estrada fora,
eu fui um irmão gémeo da vida madrugadora,
eu fui e sou um homem de alma sempre adoradora.

Eu fui, meu Deus, um sonho da Tua mão criadora,
da Tua mão divina, da Tua mão protectora,
da Tua mão que assegura sempre e que me escora.

Eu fui o que não sei que fui, ó Lume, que em mim mora,
ó Mistério sem tempo, minha eternidade agora,
Vós sois quem me dá vida e minha vida adora.
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O que eu tenho a dizer sobre os “Sonetos Místicos” do Adelino é bastante simples: não me sinto com capacidade suficiente para fazer um juízo pormenorizado sobre esta parte da sua obra. O conteúdo é sem dúvida o de um homem atento a todas as coisas que há na vida e exagera quando faz certas ilações imediatas, com alguma falta de propriedade nas comparações e metáforas . “O que me preocupa é o que me rodeia”, como diz Cesário Verde. Há sequências de sonetos sobre o mesmo tema que, pela sua linguagem menos poética, teriam necessariamente de serem revistos e seleccionados pelo A.. Altera bastante o n.º de sílabas métricas de soneto para soneto. Chego a acreditar que ele nunca terá tido a intenção de os publicar. Disso ninguém terá a certeza. A subjectividade imanente à própria essência da poesia, está por vezes ausente, sobretudo naqueles sonetos em que não temos referências para os analisar, ou são produto dos acontecimentos recentes e marcantes no presente ou no passado. .Não refiro nenhum em particular porque, embora os lesse todos, nunca tive a intenção de fazer uma análise crítica, para o que não tenho competência.. Tentei ajudar, atendendo ao pedido que o Fr. Isidro me fez e não estou arrependido de ter aceite. O Adelino foi um homem de espírito, empenhado, de grande riqueza interior, desprendido, atento a tudo e a todos numa alegria franciscana de pressa e entrega.

João Magalhães