terça-feira, 9 de março de 2010

JORGE DE SENA

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O CONTO
“HOMENAGEM AO PAPAGAIO VERDE”
DE JORGE DE SENA

Ana Paula Rosa
João Magalhães Gonçalves
Maria Aldegundes J.R. da Fonseca
Raul Mendes


1 . BIOGRAFIA E AUTOBIOGRAFIA


Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 2 de Novembro de 1919.
É filho único de uma família da alta burguesia com presunções aristocráti¬cas, por parte do pai e, por parte da mãe, de poderosos comerciantes portu¬enses.
O pai, oficial da Marinha Mercante, planeia para o filho, à nascença, a carreira mais alta da Marinha de Guerra “o futuro paralelo a tudo o que eu seria/ para satisfação dos meus parentes todos” (Poesia II, pág.65).
Concluídos os estudos no Liceu Camões, Sena entra para a Escola Naval, aos dezassete anos, onde se defronta, pela primeira vez, com a dureza da disciplina militar que viria a des¬pertar nele o espírito inconformista e revoltado que o acompanharia, ao longo dos anos. Não, talvez, pela disciplina em si, mas pela forma cega e despótica com que era aplicada, sem a dimensão humana que sempre comprometeu Jorge de Sena, na criação literária e na vida: “Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito que qual quer vida humana” (G.C.pref.71 , pág.19(1). E o R.D.M.(2) é tudo, menos uma cartilha dos direitos do homem. Este terá sido o primeiro medir de forças com as estruturas envolventes e asfixiantes do regime finalmente vitori¬oso de 1928, data-memória do conto “Homenagem ao Papagaio Verde”.
Em contrapartida, é dessas viagens, efectuadas como cadete da marinha, que irão aparecer reflexos importantes das experiências então adquiridas, em narrativas escritas anos mais tarde.
Em 1938 é demitido da Marinha de Guerra, nas sequelas da “Revolta dos Barcos” e a pretexto de falta de ginástica.
São particularmente difíceis, para Jorge de Sena, os anos 40. Inicia o Curso de Engenharia Civil em Lisboa, vindo a completá-lo no Porto, em 1944. As dificuldades de ordem económica agudizam-se. Vem depois o serviço militar no Exército, em 45.
Em 47, terá o seu primeiro emprego. Entra para a J.A.E. em 1948 onde terá que permanecer até 1959. Como engenheiro, Sena faz parte, antes do seu exílio para o Brasil em 1959, da equipa que planeou a ponte sobre o Tejo.
Já no Brasil, fixa-se como catedrático, primeiro em Assis e depois em Araraquara, no Estado de S. Paulo. É uma mudança radical na sua vida com o Mar Atlântico em fundo que catalisaria a sua moltímoda e a riquíssima obra, naquele “desespero de ser-se humano/ entre os homens que o são tão pouco”. Talvez aqui acabe ou se reforce a longa série de CAPITÃES... “capitães da marinha, do exército, da indústria, do ensino, etc, cuja missão se cifra em temperar-me num desprezo imenso da humanidade oficial com alvará para espezinhar e oprimir” (As Ittes e o Regulamento, 55).
Em 1965, decide partir para os Estados Unidos, fixando-se em Wiscousin, sempre e cada vez mais pre¬ocupado com os destinos do seu país.
“A força serena de sua mulher e seu suporte intelectual, durante 30 anos, Mécia, amparou-o na sua doença final, contra a qual lutou com a mesma raiva lucidamente sardónica que sempre des¬feria contra outras indignidades: hipocrisia, estreiteza de vistas, injustiça”. (Stephen Reckert).
Em 1970, muda-se definitivamente para a Universidade da Califórnia (Santa Bárbara). Aí viria a morrer, em 4 de Janeiro de 1978.
* Espaço Autobiográfico
“Toda a vida é uma história de infância”. (Fernão de Magalhães)
“Falo de mim em tudo o que escrevo”. (Eduardo Lourenço)
Sem querer encontrar paralelismos simplistas, a verdade é que em “Homenagem ao Papagaio Verde” o A. que fala de si naquilo que escreve, parafraseando Eduardo Lourenço, amalgama situações reais (“o papagaio verde foi meu”) com vivências e experiências distantes no espaço e no tempo, disfarçadas na história contada e que são transmutadas pela ficção, com a colaboração cúmplice do narrador.
Não é um conto meramente autobiográfico, uma confissão memoralista, pois reduziria a pouco, o muito que o A. quer revelar. A linearidade das datas, os acontecimentos cronometrados falsificariam a visão alargada “do mundo em que vivemos e da vida que nos foi dado ter ou a que nos foi dado assistir, nele”.
Há, sem dúvida, uma componente autobiográfica neste conto, como aliás em toda a obra de Jorge de Sena. O texto, como realização autónoma, facilmente se evade do “biografismo” através da imaginação. É mais esse coeficiente de imaginação, que conta, o que o coefi¬ciente e utilização do material autobiográfico, como entende David Mourão Ferreira. “Se a matéria de “Os Grão-Capitães”, é directa ou indirec-tamente auto-biográfica, a estrutura que lhe é dada é inteiramente ficção”. Mas essa imaginação passa pela experiência do A. e só nesse aspecto é que se pode dizer que tudo é, em parte, autobiográfico. É desta alquimia da realidade e da fantasia que resulta em Jorge de Sena o realismo integral que reclama para os contos de “Os Grão-Capitães”: “Nenhum realismo o será, se recuar aflito, mas porque, aflito, não recua”.
Jorge de Sena não “diz”, mas quer que fiquemos a saber que a sua infância foi dura e brutal, humilhante e per¬manentemente instável como o resto da sua vida.
O espaço reduzido e concentrado, em que se movimentam as personagens, sobretudo o rapaz e o papagaio verde, aparece, pela magia da criação estética, a encenar uma luta radical e premonitória de superação em relação ao destino; luta sublinhada na metáfora do “cacho humano” do qual virá a libertar-se pela imagem viva, redefinida e sempre recriada do “Papagaio Verde”. Ele será, aliás, o seu anjo da guarda dali em diante. Uma memória verde, humana, a ressuscitar com promessas de vida, depois de todos os invernos de solidão e abandono.

2. O TEMPO E A FICÇÃO

* Referências cronológicas

No fim do conto “Homenagem ao Papagaio Verde”, Jorge de Sena ins¬creveu as seguintes datas: Assis, 03.06.61; Araraquara 25.06.62.
É o próprio autor que, nos prefácios da obra Os “Grão-Capitães” (contos), identifica e explica essas referências cronológicas. Assim, no “PS 1974 ao Prefácio que se segue” pode ler-se: “Escrevi estes contos, em 1961-62, na atmosfera de um Brasil livre (...)”. E, no Prefácio (1971), Jorge de Sena especifica ainda melhor: “Em Março de 1961, surgiu-me o primeiro conto de “Os Grão-Capitães” cujos textos igualmente havi¬am esperado longamente pelo tempo material para serem definitivamente escritos e concebidos (esta ordem tem significado, porque nunca concebi nada, antes de começar a escrever). E a aparição e realização deles prolongou-se até Junho de 1962, quando foi revisto o conto “Homenagem do Papagaio Verde”.
Portanto, o tempo da escrita ou da criação literária abarca pouco mais de um ano (Março de 1961 a Junho e 1962), sendo esta última data do conto que vamos analisar.
Por outro lado, na portada do conto, o autor escreveu a data: Lisboa, 1928.

* O tempo da narração e o tempo da história
O tempo da narração não está cronolo¬gicamente expresso no conto, mas depreende-se que é posterior à acção pelo uso das formas verbais: pretérito perfeito, pretérito imperfeito e pretérito mais-que-perfeito. Além disso, o discurso do conto sugere a distanciação entre o tempo da história e o tempo da narração, como se pode ver nas seguintes passagens: “(...) (mais tarde, esse primeiro mistério da minha infância passou a ser celebrado na Escola de Medicina Veterinária, já com os requintes da assepsia)”, “(...) cujo sentido eu não sabia então claramente. A vida, desde então não me esclareceu muito”.
A distância entre o tempo da narração e os “factos” narrados também se nota em certos juízos do narrador sobre alguns momentos da história, bem como em processos estilísticos sugestivos como acontece no humor sarcástico da descrição da cena do bofetão dado pelo tio.
As datas referidas por Jorge de Sena (1928-1961/62) não pertencem ao texto do conto, mas o autor conseguiu expressar bem o distanciamento entre o tempo real da escrita (tempo da narra¬ção?) e o tempo fictício da acção (1928).
Jorge de Sena é bem claro no “PS 1974 ao Prefácio que se segue” sobre a data de 1928 inscrita na portada do conto: “Pelas datas fictícias que na portada de cada conto vão inscritas, a acção deles cobre um quarto de século de 1928 a 1953”.
“Se a matéria de “Os Grão-Capitães” é directa ou indirectamente autobiográfica (...)” , a data de 1928 remete-nos para a infância do autor então com nove anos. O discurso do conto comprova-o em muitas frases do narrador: “No começo das minhas memórias de infância (...)” ; “Não chegara ainda à adolescência (...)”.
As próprias peripécias da acção: vida do Papagaio Verde, relações familiares e aprendizagens do narrador sugerem um tempo bem mais longo do que um simples ano contado pelo calendário. Por conseguinte, a ambiguidade do “tudo aconteceu quase assim” e da “distância que vai das memórias à ficção” também está bem expressa no tratamento do problema: o tempo neste conto, quando relacionado com as referências cronológicas inscritas pelo próprio autor.

* Acção e Acções...
“Homenagem ao Papagaio Verde” apresenta uma introdução, em que se situa a acção na infância do narrador e se descrevem os dois papagaios, alongando-se mais na caracterização do Papagaio Verde; a acção propriamente dita e uma conclusão, em que se ilustra a “herança” de revolta que o narrador recebeu como legado do seu amigo Papagaio Verde.
O processo utilizado na narrativa da acção ou enredo da história revela uma alternância entre os “factos” que se repetiam com certo ritualismo (chegada do pai, discussões domésticas, visita dos primos, ida à escola, curativos do Papagaio Verde) - narrados no pretérito imperfeito e expressos em informantes de tempo bastante vagos: depois... daí em diante... às vezes... - e os “factos” únicos, os momentos nucleares da acção, que são pequenas sequências narrativas que fazem avançar a história ou marcam profundamente certo período da vida do narrador, e que são contadas no pretérito perfeito e situadas no tempo em expressões ainda indefinidas, mas menos vagas que nas acções repetitivas: uma vez (caso da fúria contra as criadas), certa manhã (o papagaio soltou-se), uma tarde (sova no Papagaio Cinzento), uma vez (pontapé no baixo ventre), não chegara ainda à adolescência (doença do Papagaio Verde, um dia (morte) e uma tarde (bofetão do tio).
Neste fluir da acção entre acções repetidas e casos marcantes, a intimidade entre o narrador e o Papagaio Verde e o “transfert” ou projecção da revolta do papagaio para o narrador, o processo utilizado foi sempre o de uma gradação crescente.

3. DOIS MUNDOS EM CONFLITO

O mundo dos adultos
O narrador insinua-nos, desde o começo da sua narrativa, uma dicoto¬mia entre o mundo constituído pelos adultos que o rodeavam e o seu próprio universo infantil, dominado pela presença do Papagaio Verde.
Pais, tios e criadas são por ele observados com um certo distanciamento, a que não falta mesmo uma objectividade mordaz. Eles pertencem a um mundo povoado de pessoas “(tão) caprichosas e volúveis, (tão) previsíveis, (tão) ilógicas, (tão) hipocritamente cruéis”, que possuem “... uma tendência manifesta para falarem de cor e a despropósito...”, apesar de o cercarem de “...solicitude e clausura... “ , numa casa onde muitos dos espaços lhe são interditos. Daí, que eles não mereçam da sua parte qualquer sentimento de apreço, tal como se pode observar através do discurso valorativo atrás citado.
Apesar do maior contacto e melhor relacionamento com a mãe, cuja presen¬ça física é permanente em casa, ele danos dela um retrato de uma mulher submissa “... que ficava perfilada ...” aguardando o pai sempre que este voltava de mais uma das suas viagens. Outras vezes, ela é apenas a vítima que se entrega ao sacrifício quando, cabis¬baixa, se dirige para o quarto onde o marido a aguarda, ansiosamente.
Ele vive um casamento sem amor onde a comunhão de ideias e desejos não existe. Ela cumpre apenas as suas obrigações. Daí que, recatadamente, chame a atenção do marido para a presença do filho, tentando refrear o desejo do macho sempre que, depois de mais uma ausência, ele regressava a casa. Outras vezes ela é a fada do lar, embora com poderes limitados, exercendo o seu débil domínio sobre as criadas, numa tentativa de demorar o sacrifício que a espera “Ele a chamar, ela a repetir pela centésima vez (...) as instruções para o jantar”. De personalidade pouco vincada “... apresentar-se de cabeça erguida fosse onde fosse era contra os seus princípios”, as lições de piano do filho são a única tentativa de rebeldia à vontade do marido e dos cunhados, lutando assim contra o mundo masculino que a subjuga. “E eu recomeçava, aos fins de tarde, as idas a casa de D. Antonieta, para a lição de piano, que a família toda, com meu pai à frente, achava uma indignidade mulheril e que era a única manifestação de teimosa independência por parte da minha mãe”.
O pai, pelo contrário, é um homem dominador e autoritário. Mal chega a casa, dá “recomendações acerca das fardas brancas que tinham de ser todas lavadas e engomadas”. A conjugação perifrástica com o verbo auxiliar “ter”, tal como o determinante indefinido “todas”, realçam bem os traços da sua personalidade.
Ele é o chefe a quem todos respeitam e devem obediência, mesmo os familiares que apenas visitam aquela casa, a propósito de mais um dos seus regressos, depois de mais uma das suas viagens. É um pai mítico que a criança apenas vê à hora de jantar, “durante uns quinze dias, de três em três meses “. Dele recorda, sobretudo, a violência do discurso e dos actos que atingem constantemente a mãe perante a concordância submissa dos tios “Palavras viperinas circulavam, meus tios levantavam-se também, com uma autoridade moral em que compensavam a sujeição dos muitos auxílios e jantares que meu pai lhes dava”. Ele é, pois, o Patriarca da família a quem não falta sequer uma “estatura corpulenta” para reforçar o seu domínio.

* A relação do casal
É uma relação marcada pelos padrões culturais burgueses da estrutura familiar do princípio do século - o homem é o chefe, a mulher serve apenas os seus desejos, submetendo-se inteiramente aos seus caprichos. Ela não é, de modo nenhum, a companheira que partilha de um projecto a dois. É, pelo contrário, uma mulher castrada no seu estatuto social e familiar, sem dignidade própria, numa sociedade que valoriza apenas o elemento masculino.
A relação entre o casal torna-se cada vez mais violenta, à medida que as vindas do marido são mais frequentes “As luas-de-mel eram agora curtas, rápidas, tumultuosas”. A adjectivação tripla revela-nos bem a graduação dessa violência que, a princípio, é feita apenas de palavras e de gestos, aumentando depois com o pai levantando-se e atirando com a cadeira, para passar à violência física “com (meu) pai no corredor, de faca da cozinha em punho, (...) provocando os protestos da vizinhança (...) até que os vizinhos de baixo viessem protestar contra o barulho”. Nela falham o amor e o respeito enquanto abundam a agressividade e o autoritarismo. A utilização dos códigos ideológico e conotativo estão presentes na descrição desta micro-estrutura familiar, fechada e una, dominada pelo chefe que metaforiza uma outra macro-estrutura - a do próprio país.

* A relação pai/filho
É uma relação difícil, não conseguida, que isola o filho cada vez mais do seio da sua própria família.
A princípio, o regresso do pai ainda lhe provoca uma certa curiosidade, embora odeie a expectativa que o envolve. Mas, à medida que as vindas do pai se inten-sificam e, com elas, a agressividade daquele em relação à família, dá-se a ruptura total entre si e o seu progenitor. O jovem insurge-se contra a sua autoridade atingindo o pai com um “pontapé no baixo-ventre, que o fez, num urro, largar a faca...”. O discurso conotativo é de novo utilizado para nos narrar este episódio que simboliza o ódio da criança pelo pai e pelas suas encenações de “commedia dell’arte” que, habitualmente, realiza. Ele apresenta-nos um pai que não é, de modo nenhum, um modelo de identificação, mas antes, uma personagem, na maior parte das vezes, ausente e sempre distanciado afectivamente do filho.

* A relação pais/filho
O rapaz sente-se joguete nas mãos dos pais “... a puxarem cada um por um braço (meu), cada qual exigindo que (eu) desmentisse o outro”. Em vez de respeito, sente por eles medo e ódio. É nas suas discussões que ele descobre o significado dos palavrões do Papagaio Verde. “Não foi assim, na escola ou na rua, que eu aprendi os nobres palavrões essenciais à vida, embora me ficasse, para aprender depois, algum sentido deles. Aliás, este sentido eu ia apren¬dendo adivinhadamente nas discussões domésticas, à porta fechada, entre minha mãe e meu pai, quando ele, do outro lado da porta, os bradava, e muito explicados em frases elucidativas”.
Na maior parte das vezes, ele sente-se junto dos pais, “... como uma espécie de plenipotenciário encarregado de negociar a paz de uma guerra cujas causas (...) não entendia”. Sente-se totalmente ignorado por eles: “Ninguém me perguntava ou me ensinava a perguntar o que eu queria ou o que eu pensava....”.
A educação que lhe é ministrada baseia-se, sobretudo, na obediência, não lhe deixando lugar à criatividade nem à autonomia. Chega mesmo a sentir-se “... como a bandeira branca que, depois de brandida e de sentir efeito, fica no chão, entre os cadáveres, as cápsulas, o lixo das guerras modestas e localizadas”. O desalento do jovem é-nos revelado através das metáforas utilizadas. Ele é a “bandeira Branca” que pode alcançar a paz, mas que, depois da luta, perde o valor e fica perdida no meio do lixo de uma guerra doméstica, sem valor.
Outras vezes, ele sente-se ainda o réu de uma relação infeliz e fracassada que fica “... atemorizado e trémulo ouvindo falar de colégios internos, de proibições de brincadeiras, da suspensão das lições de piano...”. Reage fortemente contra os pais e o resto da família a quem detesta, e insurge-se contra a estrutura que o oprime “Eu declarei categoricamente que os detestava a todos...”, chegando mesmo a lutar contra cada um dos elementos dessa cadeia. “Lutei contra ele que me agarrava, e contra meu pai que o agarrava a ele, e contra minha mãe que agarrava meu pai, e contra minha tia que os agarrava a todos.”
Inconformado, o rapaz reage contra um sistema de valores que não aceita naquela casa “...triste e soturna...”, onde se sentia um prisioneiro: “...eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme do meu presídio)...” E, isolando-se total e gradualmente da família, procura no Papagaio Verde a amizade que aquela lhe rouba.
4. UNIVERSO AFECTIVO
No conto, o narrador retrospectiva um segmento do seu passado, correspon¬dendo esse segmento à sua infância e pré-adolescência. Nesse decurso da sua vida, o relacionamento com a ave tornou-se o centro do seu mundo.
No ponto anterior analisou-se a orga¬nização familiar em que a personagem aparece inserida, repercutindo-se num comportamento defensivo e inibido, alheio às manifestações típicas de energia e jovialidade próprias da criança que consideramos normal.
Nesta linha de ideias, a singularidade do conto transporta-nos para um universo afectivo pouco vulgar: uma interde¬pendência evolutiva entre uma criança e uma ave que, de mero animal de estimação, a princípio sem nome e confinada à varanda da cozinha, vai ganhando um estatuto de companheiro de clausu¬ra: “Ficávamos (...) os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme o meu presídio), e ele, com gaiola pendurada alta (...)”, (o sublinhado é meu), e mais tarde de interlocutor, de cúmplice, de agente de subversão do poder instituído; em suma, de “personalidade animal”.
Homenagem ao Papagaio Verde inscreve-se por isso, a meu ver, no âmbito das ficções que se ocupam do fecundo universo de solidariedade ou empatia, que homens e animais podem criar, focado por autores como Juan Ramón Jimenez (Platero e eu) e Jack London (O lobo do mar).
Aproximação dos dois seres, criança e papagaio, acontece por via de uma série de circunstâncias discriminadas no texto, e que apresentam em comum o factor contraste relativamente ao ambiente em que ambos estão inseridos. Assim, a cor garrida do animal opunha-se à soturnidade da casa, onde surgia como “uma nódoa insólita”; o reportório obsceno do bicho contrastava com a contenção verbal revelada em público; de igual modo, a sua dignidade de porte era oposta a certas atitudes de subserviência ou comportamentos ofensivos assumidos pelos adultos. Não menos importante é a capacidade que a imponente ave tem de exteriorizar afecto, num ambiente de extraordinária frieza de sentimentos: “(...) meu pai (...) roçava-se na testa uns lábios rios e o bigode esverdinhado, farto e retorcido nas pontas que ele frisava, e parava ao pé da minha mãe, sem jeito de abraçá-la.”
O papagaio começa a preencher a ausência de uma figura humana comunicante (figura de substituição) e ser objecto de um investimento afectivo crescente, que culmina na personificação plena, aquando da morte do animal: “Foi a primeira pessoa que eu vi morrer”.
Na linha de evolução do relaciona¬mento atingido, assistimos à progressiva conquista, por parte de ambos, de novos espaços territoriais e de um esta¬tuto de maior poder: “Fui, por extensão, pouco a pouco, sem cálculo nem método, conquistando o Papagaio Verde, e, ao mesmo tempo, o respeito já lendário que ele impusera à sua volta”. “Mas, quando eu o soltava, e ele andava por toda a parte atrás de mim, tudo ficava por nossa conta: minha mãe fechava-se no quarto, as criadas fechavam-se na cozinha”.
A relação evolui através da exploração de canais de comunicação básicos (carícias, esgares, posturas...) e outros mais elaborados (música,tos, que até “tinham raiva daquele entendimento”.
Acresce que o estreitamento do contacto criança/animal é paralelo ao distanciamento criança/mundo dos adultos e vida escolar. A dada altura da doença do papagaio, o próprio narrador refere a sua apatia e indiferença relativamente a esse outro mundo: “isto durou semanas que me fizeram às vezes faltar às aulas, não ouvir ninguém, não notar ninguém”.
Pelo que foi dito, concluímos que está patente no conto o tópico de marginalidade, valorizada como defesa da individualidade e condição de liberdade. Recordemos as conotações que o narrador atribui ao papagaio: evasão, exotismo, espontaneidade, independência...
Para terminar, numa perspectiva de intertextualidade, quero registar o paralelo entre esta história, cujo protagonista é um animal, e todo o vasto leque de parábolas educativas, onde também os animais veiculam uma lição, isto é, identificam/encarnam um ideal.

5. E UM POEMA NASCEU...
“O dom da poesia é uma conquista de quem o deseja, porque o ama” E. Melo e Castro
Ligado a toda esta “história” está, sem dúvida, o poema “LA CTHÉDRALE ENGLOUTIE”,a emergir da imaginação do poeta, pela magia impressionista de Debussy.
Há aqui paralelos claros e referências directas ao que foram os verdes anos de Jorge de Sena. Vem ao acaso a aprendizagem compulsiva da música, “imprópria de um rapaz...”, que se tornaria em mais uma arma de resistência ao mundo asfixiante que o rodeava, na companhia cúmplice e solidária do Papagaio Verde.
“LA CATHÉDRALE ENGLUTIE”, de Debussy

"Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entreViúva Alegre e Mozart,
o grande futuroparalelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na demais, imprópria e um rapaz
que era pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera
o Penson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e Salgari,
e o Eça e o Pascoaes. E lera também
nuns caderninhos que me erampermitidos porque aperfeiçoavam o francês,
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas do que eu era
a história da catedral de Ys submersa nas águas"(...).
(...) Excerto/Poesia II, pag.165

Este poema marca, na opinião de J. F. Lourenço, o Ano I a poesia de Jorge de Sena. É o que ele insinua logo na primeira estrofe ao regressar ao piano e à infância, ao tempo mágico da descoberta e o ponto de partida e de chegada de todas as infâncias e de todas as des¬cobertas, para situar na ignorância inici¬al “eu não sabia nada de poesia e literatura...” a rebeldia suficiente para estar atento a tudo o que fosse novidade e diferente, em leituras diversas e diversificadas: “Eu lia muito é certo”. Assim conhece “a história da catedral de Ys submersa nas águas”.
“Um dia (...) foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos, os cânticos, e o eco das abóbadas...”
Assim, nos dá conta o poeta, sem espaço nem idade, num realismo mági¬co, do início da mudança - através das realidades adivinhadas, fantásticas, dum mundo submerso e fantasmagórico a que a música de Debussy dava corpo e consistência - o que Sena jamais lhe perdoará. Nem esquecerá, nem saberá agradecer bastante “as fissuras da vida que se lhe abriram para sempre”.
A mudança é radical: “... nunca mais pude ser eu mesmo”. “Do jovem tiranizado e triste/ que viverá tranquilamente arreliado até à morte” emerge catapultado pelos compassos do prelúdio do impressionista francês “que os pedais faziam pensativos” a “soma teimosa do que não existe: exigência, anseio, dúvi¬da...”. Estes versos, e praticamente toda a estrofe, reflectem bem a insegurança interior, o drama que é a procura contí¬nua, a revolta sempre avivada na nostalgia do Papagaio Verde contra “esse lixo do mundo e papéis velhos/ que sai dum jarrão exótico que a criada partiu...”. Era apenas o começo. Ou o meio? Ou o fim? Nunca saberemos, porque a poesia não tem tempo nem idade. Nem zonas demarcadas, na obra multímoda de Jorge de Sena, pois “um género de escrita o levava a outro, como complemento de expressão” (Mécia de Sena).
O acervo de interrogações retóricas, antíteses, quase paradoxos a última estrofe, não escondem uma reconcilia¬ção íntima, cansada, reconfortante, pacificadora, se lermos os últimos versos, suprimindo os pontos de interrogação: “Eu hei-de perdoar-te. Eu hei-de ouvir-te ainda. Mais uma vez eu te ouço. Ou tu, perdão, me escutas.
Estes versos completam assim o “leit-motiv” do perdão “negado” e festejando no primeiro verso do poema. Isso constituirá para ele, quase um fado:

FIDELIDADE


“Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presençacom que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
.........
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria as mortos,se voltassem.
(Poesia II, pag.18)

A música que aprendeu na infância confirmou-o no seu destino de poeta.
Nesta poesia pode ainda notar-se, e a concluir, o nível estruturalmente discursivo, oscilando entre o neobarroquismo e o surrealismo.

CONCLUSÃO
“Homenagem ao Papagaio Verde” é uma “história de infância que revela um mundo interior pessoal (“eu”) e fictício (narrador) a partir de dados reais: a casa, o papagaio, a família, a escola... e a prisão domiciliária, encenando uma infância difícil, traumatizante, sufocada na estreiteza do viver dos seus e que era “pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público” (Poesia II, 165). Surge-nos o “jovem tiranizado e triste que viverá tranquilamente arreliado até à morte” (Poesia II, 166) que parece culpar a sua infância difícil de filho único-mimado como seria natural e não acontece - e domado externa e interiormente pela vigilância apertada da sociedade de uma época em decomposição “desse tempo de uma tirania que castrava Portugal”.
Os papagaios não têm memória. “Os homens, sim. É por isso que só eles podem escolher o seu lugar e o seu tamanho” (Fernão de Magalhães).
A liberdade adiada, o papagaio, o verde de todas as angústias e esperan¬ças impregnam, de uma forma obsessiva, não só toda a textura do conto, como constituirão as ideias-força do pensamento do humanista e lutador que foi Jorge de Sena.

"QUEM A TEM"

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
(Poesia II, pag.42)

O papagaio era dele. E a literatura tem destas artes: afinal, o papagaio não morreu. Sena prestou-lhe a HOMENAGEM de toda uma vida. Um legado de gratidão e responsabilidade que nunca mais deixará de lhe encantar e amargurar a existência.
OBRAS CONSULTADAS
CARLOS, Luís F.A., “Jorge de Sena e a Pirâmie no Inverso” in Colóquio/Letras, n° 104/105, Julho-Outubro, Lisboa, Gulbenkian, 1988;
CHEVALIER, J. e CHEERBRANT,A., Dictionaire de Symboles, Paris, Júpiter, 1982;
COELHO, J.E, “Jorge de Sena, Professor” in Colóquio/Letras, n°104/105, Julho-Outubro,
Lisboa, Gulbenkian, 1988;
GONÇALVES, F.M., Ser Torga, Chaves, Ed. Tartaruga, 1992; LOURENÇO, J.E, O Essencial sobre Jorge de Sena, Lisboa, INCM, 1987;
MOURAO-FERREIRA, D., “Entrevista” in Jornal Letras e Letras, ng101, Outubro, Porto, 1993;
PEDROSA, I.,“Dossier Eduardo Lourenço Revisitado”,in JL, Ano VI, nQ231, Dezembro, 1986;
SARAIVA,A.J. e LOPES,O., História da Literatura Portuguesa,Porto, Porto Ed., 1976.

(1) Todas as citações do conto “Homenagem ao Papagaio Verde” foram retiradas da Obra “Os Grão Capitães” (contos), Edições 70, Lisboa, 1989
(2) Regulamento e Disciplina Miliar

Trabalho apresentado em 1994 numa acção de Formação: “Estudos literários/Literatura Portuguesa Contemporânea”.
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